A situação na Faixa de Gaza entrou há muito no capítulo de destruição e desespero. Enquanto as bombas continuam a cair e a ajuda humanitária debate-se com bloqueios e promessas diplomáticas, a complexa teia que liga Israel, Hamas e a Autoridade Palestiniana liderada por Mahmoud Abbas ressurge com nova clareza - e velhas responsabilidades.
A origem de um monstro
Pouco divulgado, mas amplamente documentado, é o facto de que o Hamas foi inicialmente incentivado e tolerado por Israel nas décadas de 1980 e 1990. À época, a estratégia era clara: dividir o movimento nacional palestiniano e enfraquecer a então dominante Organização para a Libertação da Palestina (OLP), liderada por Yasser Arafat, e mais tarde por Mahmoud Abbas.
Segundo ex-oficiais da inteligência israelita, a criação e crescimento de instituições sociais ligadas ao Hamas - então encaradas como meramente religiosas e comunitárias - foram permitidas e até financiadas indiretamente, numa tentativa de minar o poder da Fatah, partido de Abbas. Mas o que começou como uma manobra de desestabilização interna rapidamente fugiu ao controlo israelita, culminando com a tomada "autorizada" da Faixa de Gaza pelo Hamas em 2007.
Desde então, Abbas perdeu qualquer autoridade real sobre Gaza, e a Faixa tornou-se uma espécie de enclave autónomo radicalizado, sob bloqueio israelita e, desde outubro de 2023, alvo de campanhas militares devastadoras. Obviamente que essa divisão favorecia Israel - tinha dividido os palestinos e tinha-os separado de forma física, politica e até social.
Abbas: entre o desprestígio e a marginalização
Com 89 anos, Mahmoud Abbas continua à frente da Autoridade Palestiniana, mas sem mandato eleitoral legítimo desde 2005 e com escassa legitimidade entre o seu povo, especialmente após a escalada da guerra mais recente em Gaza. Ainda assim, o presidente palestiniano tem feito declarações firmes, tanto contra Israel como contra o Hamas - com quem mantém uma rivalidade profunda. Rivalidade essa que beneficia Israel, diga-se!
Nos últimos meses, Abbas tem reiterado que:
- Rejeita o deslocamento forçado de palestinianos de Gaza, classificando-o como um novo Nakba;
- Exige a retirada total das forças israelitas e o fim do cerco;
- Está preparado para reassumir o governo da Faixa de Gaza, com apoio internacional;
- Condena o Hamas, exigindo que entregue os reféns e ceda o controlo do território à autoridade palestina.
Mas como, se não fez acordos com o governo sionista em relação a isso, nem tem noção se isso faria Israel alterar a sua politica de afastar os palestinos do seu próprio território!?
Em declarações durante uma visita a Moscovo em maio de 2025, Abbas afirmou: “Estamos contra a remoção de palestinianos da Palestina… este plano é inaceitável e por isso recusado.”
Mais recentemente, acusou o Hamas de ter dado a Israel o pretexto para a guerra devastadora em Gaza, chamando os seus dirigentes de "filhos de cães", e responsabilizando-os por prolongarem o sofrimento do povo palestiniano. Mas, mais uma vez, é essa divisão que é aproveitada por Israel para considerar que os palestinos vivem "sem autoridade".
A proposta internacional… e as feridas internas
A Autoridade Palestiniana, segundo Abbas, está pronta para assumir a reconstrução e administração de Gaza após um cessar-fogo. Propõe uma reforma institucional, a realização de eleições dentro de um ano, e aceita a presença de forças árabes e internacionais para garantir estabilidade.
Mas, mesmo perante esse plano, persistem dúvidas internas e externas: a população da Faixa de Gaza (2 milhões) rejeita tanto a ocupação israelita quanto a Autoridade de Abbas, que muitos consideram comprometida e distante. Por outro lado, os líderes israelitas temem que devolver o controlo a Abbas represente apenas uma fachada para a re-infiltração do Hamas.
Um ciclo que se repete?
A crise atual não surgiu do nada. É fruto de décadas de manipulações políticas, ocupações e tentativas falhadas de controle indireto. O apoio israelita inicial ao Hamas, com o objetivo de neutralizar Abbas e a OLP, acabou por reforçar o grupo mais radical da resistência palestiniana. Hoje, Israel combate esse mesmo inimigo, enquanto ignora ou rejeita a única estrutura palestiniana que ainda mantém relações diplomáticas com o Ocidente.
A história parece repetir-se com ironia amarga: os que foram usados como peões tornaram-se reis de uma tragédia sem fim, e os que perderam o território reclamam agora legitimidade sobre um povo devastado.
No centro de tudo, permanece uma questão essencial: quem pode falar - verdadeiramente - pelo povo palestiniano? Quem pode negociar com Israel, com o ocidente e com a cobardia dos dirigentes das outras nações árabes? Como por um ponto final ao genocídio de mais de 2 milhões de palestinos?
Autor: João Gomes in Facebook