As palavras de Mahmood Abbas, presidente da Autoridade Palestiniana (AP) são um ataque sem precedentes ao Hamas. “Filhos de cães”, foi a expressão usada por Abbas, acusando o Hamas de ter dado e continuar a dar pretextos a Israel para atacar o povo palestiniano. Uma referência ao ataque do 7 de Outubro e, agora, à recusa do Hamas em libertar os reféns israelitas.
O violento ataque de Mahmood Abbas foi proferido durante o longo discurso de abertura na 32ª sessão do Conselho Central da OLP (Organização de Libertação da Palestina), em Ramallah.
“O Hamas forneceu à ocupação criminosa pretextos para cometer os seus crimes na Faixa de Gaza, o mais flagrante dos quais é a detenção de reféns”, disse Abbas. (…) “Eu é que pago o preço, o nosso povo é que paga o preço, não Israel (…) Libertem-nos”, continuou Abbas, utilizando depois uma expressão do vernáculo árabe – e muito ofensiva – para classificar os dirigentes do Hamas: “filhos de cães”. “Todos os dias há mortes. Porquê? Porque vocês não querem entregar o refém (norte-)americano. Filhos de cães, abram mão do que têm e tirem-nos daqui”, disse.
Amigos árabes dizem-me que esta expressão “filhos de cães” é do pior que se pode dizer a alguém, ao nível do nosso “filho da puta”, sendo que o cão, na cultura árabe, é considerado um animal impuro.
O Hamas reagiu quase de imediato. Bassem Naïm, do gabinete político, considerou que Mahmood Abbas insultou uma parte importante do povo palestiniano e acusou o presidente da AP de rejeitar a responsabilidade de Israel na agressão em curso. Cerca de 24 horas depois, em comunicado, o Hamas criticou os “insultos” de Abbas “numa altura em que a situação nacional exige um maior apoio à resistência, em vez de a difamar ou responsabilizar pelos crimes da ocupação sionista”.
Curiosamente, as palavras de Abbas consideradas insultuosas pelo Hamas, não constam do discurso oficial, em inglês, que a WAFA (Agência de Notícias da Autoridade Palestiniana) distribuiu, mas há registos vídeo desse momento. As palavras de Abbas significam que apesar de todos os encontros, promessas e apelos, a divisão entre lideranças palestinianas não tem solução nos tempos mais próximos. Uma divisão em que Israel sempre apostou e em que os palestinianos se deixaram enlear. Fazer este tipo de acusação após 18 meses de bombardeamentos e ataques israelitas à Faixa de Gaza, quando já se contam quase 52 000 mortos e o território palestiniano está quase totalmente reduzido a escombros, não parece um acto sensato do líder da AP. Abbas falou em Ramallah, em Gaza os palestinianos continuaram a morrer e em Telavive Benjamin Netanyahu sorriu.
A conferência de Pequim, no verão de 2024, que juntou todas as facções palestinianas, apontou para a criação de um governo de unidade nacional, mas a AP nada fez nesse sentido. E a OLP só agora, após 18 meses de guerra na Faixa de Gaza, reuniu o Conselho Central. Talvez também por isso várias facções palestinianas boicotaram esta sessão da OLP: FPLP (Frente Popular para a Libertação da Palestina), Movimento Iniciativa Nacional, Aliança das Forças Palestinianas e várias personalidades independentes não compareceram deixando Mahmood Abbas e a Fatah a falarem praticamente sozinhos.
A complexidade da situação no Médio Oriente mostra-nos palestinianos profundamente divididos, mas em Israel a contestação à liderança de Benjamin Netanyahu ilustra igualmente uma sociedade com grandes fracturas, apesar da guerra ser um factor que “segura” Netanyahu no poder. Netanyahu agradece, e a extrema-direita também.
Ninguém duvida que o ataque do Hamas a Israel em 7 de Outubro de 2023 é condenável. Acrescentar um “mas” a esta afirmação não deve ser entendido como desculpa para o ataque do Hamas, sendo, isso sim, a constatação de factos, anteriores ao 7 de Outubro, em relação aos quais o mundo fechou os olhos e os palestinianos foram sofrendo as consequências, e morrendo.
Mahmood Abbas tentou percorrer uma via não-violenta. A pergunta a fazer é simples: que dividendos retiraram os palestinianos dessa política? A resposta também é simples: ZERO!
Perderam território, os presos palestinianos nas cadeias israelitas aumentaram, Gaza está cercada desde 2007, os colonatos aumentaram, as incursões e ataques militares israelitas na Cisjordânia nunca pararam, os ataques dos colonos israelitas a aldeias e à propriedade palestiniana multiplicaram-se, as condições de vida dos palestinianos nos seus territórios deterioram-se.
A par desta deterioração, a AP tem sido vista como uma força que colabora com Israel, travando qualquer acção de revolta dos palestinianos e atirando muitos deles para a prisão. Foi o que aconteceu antes da ofensiva militar israelita na Cisjordânia logo que foi decretado o cessar-fogo em Gaza a 19 de Janeiro d 2025. Em Dezembro de 2024, as forças da AP cercaram o campo de refugiados de Jenin para perseguir as “Brigadas de Jenin”, grupos de palestinianos jovens que agregavam militantes do Hamas, da Jihad Islâmica, mas também da Fatah – o partido do presidente da AP. A par disso, seguindo o exemplo israelita, a AP baniu a televisão Al Jazeera da Cisjordânia, precisamente a grande cadeia televisiva que tem mostrado ao mundo o massacre que está a ocorrer na Faixa de Gaza.
Há muito tempo que a Autoridade Palestiniana perdeu credibilidade junto de uma parte considerável da população palestiniana e é vista como uma instituição mais alinhada com o poder israelita do que com as aspirações do povo palestiniano. Ao mesmo tempo, cresceram os sinais do aumento da popularidade do Hamas. O sofrimento palestiniano em Gaza e um quase total silêncio da AP contribuíram para isso. A resistência que o Hamas tem oposto a Israel é vista por muitos palestinianos como a única forma de lutar pela causa palestiniana. A razão é simples: todas as negociações e “compromissos” acabaram sempre com os palestinianos a perder.
Certamente com muitos defeitos, Yasser Arafat foi um verdadeiro líder. Tinha carisma, forte caracter e era reconhecido pelos palestinianos. Apesar de ter sido “compagnon de route” de Arafat, Mahmood Abbas, 89 anos, ainda não percebeu que os palestinianos (já) não o respeitam nem reconhecem enquanto líder. Poder-se-á dizer que Abbas tem tentado que a Cisjordânia e Gaza não se transformem num campo de batalha em que o maior poder militar de Israel transforme os territórios em campos de morte e sofrimento, mas nem isso tem conseguido.
A Faixa de Gaza já não é uma prisão a céu aberto, é um campo de concentração onde o destino mais provável de cada um dos palestinianos é a morte. A Cisjordânia não deve demorar muito a seguir o mesmo caminho.
Autor: José Manuel Rosendo (Jornalista)
Pinhal Novo, 24 de Abril de 2025
Fonte: https://meumundominhaaldeia.com/2025/04/24/palestinianos-sem-lideranca/