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Angola: Entre a sombra de Biden e o caos Trumpiano
Notável artigo do Prof. Orlando Victor Muhongo
Por Administrador
Publicado em 02/05/2025 13:58
Novidades

 

Por: Orlando Victor Muhongo*

 

O Departamento de Agricultura dos Estados Unidos da América anunciou na sexta-feira, 25 de Abril de 2025, que a China cancelou a importação de 12.000 toneladas de carne suína dos EUA. Em 2024, a China foi somente o terceiro maior mercado de carne suína dos Estados Unidos, tendo, nesse período, importado 475.000 toneladas, correspondente a 1,1 bilhão de USD. Mas este não é o resumo completo da história.

 

A Hapag-Lloyd, empresa marítima alemã, registou o cancelamento de 30% das reservas da China para os EUA. A imprensa norte-americana, em pânico, noticia a existência de uma queda no fluxo de navios chineses nos portos de Los Angeles e Long Beach. Mas, ainda não é tudo. O responsável máximo da empresa Flexport, de nome Ryan Petersen, anunciou que, desde a entrada em vigor das tarifas de Donald Trump contra o dragão asiático, ocorreu uma diminuição de 60% das reservas de contentores marítimos da China para os EUA em todos os sectores.

 

Mesmo depois do anúncio das tarifas norte-americanas contra a China e a posterior resposta chinesa, já algumas mercadorias tinham sido encomendadas e colocadas em circulação, visto que ainda estavam dentro do período de tolerância. No entanto, muitos analistas, dentro e fora dos EUA, receiam uma profunda vaga de “desabastecimento” de produtos essenciais no mercado norte-americano depois da chegada dos últimos navios saídos da China. Muitas previsões apontam para prateleiras vazias nos EUA, comparáveis somente com o período da pandemia da Covid-19.

 

Desesperado por reinventar as engrenagens do capitalismo imperialista, substituindo as regras criadas pela própria burguesia liberal por rugidos prévios a sessões de intimidação e assalto tarifário, qual vampiro ávido de sangue para a sobrevida de um império em estado de coma terminal, Donald Trump viu as suas cartas convertidas em cinza, ante a reacção do até então “inabalável” Xi Jinping. Trump teve de recuar e isentou das tarifas lunáticas dezenas de produtos eletrónicos feitos na China e amplamente vendidos nos EUA.

 

Desde então, o autoproclamado mestre do "deal" viu-se obrigado a recolher a sua vaidade, alterando o seu roteiro sobre uma China que representava um perigo para os EUA, para uma pseudo-manifestação de admiração pela inteligência do líder comunista, anunciando inclusive o suposto decurso de conversas imaginárias com dirigentes chineses com vista a um suposto acordo. Nas últimas setenta e duas horas, os chineses tiveram de vir a público, em duas ocasiões, desmentir Donald Trump. A verdade é que Xi Jinping levou a sério a declaração de guerra e tem reconfirmado as suas alianças comerciais a nível da Ásia.

 

É verdade que os choros e ranger de dentes existem tanto no sector empresarial estadunidense, assim como no chinês. No entanto, a relação entre o sector empresarial com a cultura política na China é totalmente distinta da que se verifica nos EUA. Na verdade, há mais de 30 anos que a China tem esperado pelo momento em que a finada potência hegemónica do norte da América quebraria todas as regras para travar o crescimento económico, tecnológico e social do dragão asiático.

 

Mas o que significa isto, de facto?

 

O mundo vem manifestando sinais de mudanças irreversíveis. Por mais que se tenha algum tipo de crítica contra a China, o maior erro que um político, governante ou intelectual pode cometer neste século XXI é ignorar o papel do gigante asiático no comércio global.

 

No caso dos países periféricos, parcerias com a China permitiram que dezenas de Estados do sudeste asiático, de África, da América-latina e da Oceânia tivessem a possibilidade de obter financiamento para o desenvolvimento de diversos sectores decisivos conforme as realidades específicas. A necessidade voraz de matéria-prima e a busca permanente por mercado por parte do gigante asiático criaram oportunidades de cooperação em formatos distintos daquelas que até então eram impostas pelas contrapartes ocidentais.

 

O caso de Angola

 

Ao longo de várias décadas, Angola foi capaz de construir relações equilibradas com as potências ocidentais ao mesmo tempo que possuía relações históricas com a Rússia e parcerias privilegiadas com a China. Durante os anos da guerra civil, mesmo quando os EUA e alguns países da Europa ocidental prestavam apoio material e diplomático aos rebeldes, o governo angolano foi capaz de manter um modelo de relações equilibradas, o que permitiu que a diplomacia angolana granjeasse um nível de respeito reconhecido dentro e fora de África.

 

A partir de 2018, foi-se verificando uma transformação da identidade de Angola no quadrante internacional. À medida que este país se foi aproximando cada vez mais às potências ocidentais, com destaque para os EUA, foi-se afastando de aliados históricos e estratégicos, sem ao menos preservar as aparências. Por exemplo, a política externa de Angola apostou “todas as fichas” numa estranha “amizade íntima” com Joe Biden, em troca de um prejuízo grave dos laços com a Rússia e com a China, que é o maior credor deste país.

 

Importa recordar que Angola, para além de ter entregado a Bacia do Namibe à Exxon Mobil para a exploração de petróleo, decisões governamentais preteriram a China na gestão do Corredor do Lobito, tendo este activo estratégico sido entregue a um consórcio americano-europeu. Em Agosto de 2023, completaram-se três meses sem a presença de um Embaixador chinês em Angola, facto inédito na história da relação entre os dois países, que em termos diplomáticos constitui uma ocorrência de elevado significado, assim como a ausência de uma representação de alto nível de Luanda na cimeira China-África, em Pequim, em Setembro de 2024.

 

É dado assente que a relação entre os Estados é feita significativamente com base em interesses mútuos, em processos em que cedências e medidas de política externa perseguem necessariamente benefícios em favor dos países envolvidos numa cooperação bilateral. O facto é que, até no presente momento, para um observador das relações internacionais torna-se extremamente difícil identificar as vantagens ou os benefícios que Angola terá obtido em troca das diversas cedências feitas aos EUA.

 

O embargo monetário contra Angola persiste, as chantagens do GAFI e a escassez de divisas continuam a abalar a economia local, sem que até ao momento se percebam os benefícios concretos da viragem radical da posição do país no mapa geopolítico. É provável que um pirata de Mogadíscio ou um rufia do M23 tenha a possibilidade de transferir ou receber remessas via Wester Union para ou de familiares na Bélgica mesmo depois da ocupação de Goma. Aos angolanos, no entanto, foi coartado este direito. Nem com os anos de genuflexões diante do "sumo pontífice" Biden - o sorridente amigo de Angola, foi possível resgatar a dignidade das pessoas deste país no sistema financeiro internacional.

 

Estáticos entre a sombra e o caos?

 

O "amigo" Joe Biden é hoje uma sombra. Trump, porém, representa os "restauradores" que buscam a todo o custo alcançar o impossível novo século americano por via da "ordu ab chao", tentando salvar o que resta de um império em estado de coma profundo e irreversível.

 

Uma das primeiras medidas de Trump foi a inclusão de Angola numa lista de países cujos cidadãos podem estar sujeitos a restrições de entrada nos EUA. Enquanto isto, os pronunciamentos públicos em Luanda expressam como maior preocupação a tentativa de provar que o governo Trump não suspendeu o financiamento ao Corredor do Lobito.

 

 

Temos visto países africanos a moverem as suas peças de acordo com a salvaguarda dos interesses nacionais face à realidade internacional que vem sendo imposta pela Casa Branca. Félix Tshisekedi, por exemplo, ofereceu a Trump um acordo de minerais no sentido de tornar Kinshasa no vendedor directo dos recursos do leste da RDC às empresas estadunidenses, visando prejudicar o negócio ilícito de Kigali e seus rebeldes. Numa das primeiras medidas do seu governo, a presidente Netumbo Nandi-Ndaitwah decidiu reintroduzir a obrigatoriedade de visto de entrada na Namíbia para cidadãos de vários países, incluído os EUA, por falta de reciprocidade.

 

O posicionamento de um país no quadrante internacional depende de diversos factores. Embora aspectos de natureza económica e política possam determinar a afirmação ou não de um país no cenário internacional como superpotência, potência regional, Estado soberano, Estado cliente ou Estado vassalo, não se deve, no entanto, ignorar a importância que as características do governante exercem na forma como um país se move no xadrez internacional e na maneira como o mundo observa um determinado Estado.

 

Trump tinha a expectativa de que, depois da "declaração da guerra tarifária" contra a China, Pequim se ajoelharia perante Washington. O presidente dos EUA acreditava que Xi Jinping telefonaria imediatamente para a Casa Branca pedindo perdão e cederia as vantagens construídas pelo gigante asiático ao longo de décadas. No entanto, meses se passaram e Trump não recebeu a tão esperada chamada telefónica. Washington pede agora a participação dos países aliados na sua investida contra Pequim. A China revidou mais uma vez e prometeu retaliação contra qualquer país que prejudicar os seus interesses. O Japão, dos mais leais Estados satélites dos EUA na ásia, já fez saber que, desta vez, não obedecerá às ordens de Washington.

 

O resultado da guerra tarifária de Trump confirma a emergência de uma nova realidade em que a preservação da soberania dos países da periferia do sistema internacional passa pela afirmação de lideranças comprometidas com o verdadeiro interesse nacional, assim como pela manutenção de alianças confiáveis diante dos novos polos gravitacionais emergidos no cenário global.

 

Preocupa o facto de, mesmo perante esta movimentação decisiva das “placas tectónicas” da geopolítica mundial, vigorar uma visível indefinição no sentido da política externa de Angola. Considerando a aproximação aos EUA em prejuízo da parceria com a China, o contexto internacional vigente exige de nós alguns exercícios analíticos, como o seguinte:

- Supúnhamos que Washington solicite a Angola, na condição de "país aliado", a adesão à guerra tarifária ou a medidas sancionatórias contra a China. O que fará Angola? Manter-se-á leal aos EUA afectando os interesses da China, que é o seu maior credor? Luanda oferecerá Angola para a primeira visita de Trump em África e mandará a China às urtigas?

 

 

 

Luanda, 27 de abril de 2025

 

*Analista de Relações Internacionais

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