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Arquiteto da 'Pátria Azul' alerta: a OTAN falhou e a UE quer a Turquia de joelhos
Por Administrador
Publicado em 13/04/2025 11:00
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Cem Gurdeniz, o estratega por trás da doutrina da Pátria Azul da Turquia, alerta que a OTAN está entrando em colapso e que a UE busca explorar a posição estratégica da Turquia, que enfrenta declínio interno e irrelevância militar. Ele defende um futuro soberano e alinhado à Eurásia – nos termos da Turquia.



Por Ceyda Karan, no The Cradle



Na segunda década do século XXI, mudanças geopolíticas sísmicas levaram as potências globais a reavaliar a importância da posição da Turquia na Eurásia. Esse foco crescente – de Washington a Moscovo, de Bruxelas a Pequim – só se intensificou à medida que o bloco ocidental se recupera de uma série de derrotas estratégicas, particularmente na Ucrânia.

Por mais de duas décadas, a orientação geopolítica do governo do presidente turco Recep Tayyip Erdogan tem sido objecto de acalorado debate, tanto no país quanto no exterior. Hoje, esse debate se intensificou.


A direção da política externa da Turquia assumiu uma nova urgência. Com o retorno de Trump à Casa Branca, o histórico militar da OTAN em frangalhos e a UE lutando para se afirmar em meio à decadência interna, as escolhas estratégicas da Turquia agora têm peso muito além de suas fronteiras.


Sinais recentes de Bruxelas sugerem um impulso renovado para revitalizar o caminho da Turquia rumo à UE, após décadas de atrasos, rejeição e manipulação política. Essas propostas surgem num momento em que a Turquia, o segundo maior exército da OTAN, está sendo vista pelas capitais ocidentais não como uma parceira, mas como uma zona de proteção contra as crescentes potências eurasianas e a instabilidade regional.


O Contra-Almirante aposentado Cem Gurdeniz – arquiteto da doutrina marítima da " Pátria Azul " e uma das mentes geopolíticas mais proeminentes da Turquia – permanece profundamente cético. Conhecido por sua visão soberanista, postura kemalista e feroz oposição à influência neocolonial ocidental, Gurdeniz há muito alerta contra a possibilidade de a Turquia vincular o seu futuro a um Ocidente em declínio.


As suas experiências , incluindo 3,5 anos de prisão por acusações forjadas no infame caso “Sledgehammer” liderado pela rede Gülenista (FETO), consolidaram ainda mais a sua visão de que a Turquia deve traçar um curso independente e alinhado à Eurásia.


Nesta entrevista abrangente com o The Cradle, Gurdeniz examina o realinhamento do poder global, os fracassos da política neoconservadora na Ásia Ocidental, o colapso económico do sistema liderado pelos EUA e os perigos do envolvimento contínuo da Turquia em estruturas transatlânticas que não atendem mais aos seus interesses nacionais.



(Esta entrevista foi editada para maior clareza e duração)

The Cradle: Com o retorno do presidente dos EUA, Donald Trump, ao poder e a guerra na Ucrânia expondo as fraquezas da OTAN, como devemos entender a ruptura na ordem mundial liderada pelo Ocidente?


Gurdeniz: Estamos testemunhando o segundo grande colapso da ordem de segurança global desde a Segunda Guerra Mundial. O primeiro ocorreu depois de 1990, quando a União Soviética se dissolveu voluntariamente e Washington expandiu rapidamente a sua influência pela Europa Oriental. Mas hoje, 80 anos após o fim daquela guerra, os EUA estão iniciando a sua própria retirada – deslocando o seu centro de gravidade estratégico da Europa para a Ásia-Pacífico.


O governo Trump reconhece isso. A sua estratégia não se resume mais ao controle global, mas sim à retração e à preparação para uma rivalidade entre grandes potências no Pacífico, particularmente com a China. Não se trata de um ajuste tático – é um colapso sistémico. A derrota da OTAN na Ucrânia não foi apenas uma perda no campo de batalha – foi o fim de uma ilusão.


The Cradle: O que quebrou o consenso pós-Guerra Fria liderado pelos neoconservadores?


Gurdeniz: A ordem pós-1990 foi construída sobre a ilusão da unipolaridade. Os EUA declararam a democracia capitalista liberal como o modelo universal. Nesse sistema, o Ocidente controlava as finanças, a China era responsável pela manufatura e os Estados ricos em recursos eram obrigados a fornecer energia e matérias-primas.


Mas esse modelo encontrou contradições fatais. O poder militar dos EUA fracassou no Iraque, na Líbia e no Afeganistão. Em vez de estabilidade, trouxe destruição. A Rússia se reafirmou militarmente após 2008. A China ascendeu económica e tecnologicamente, desafiando a hegemonia ocidental.

E juntos, construíram um contrapeso eurasiano. Mais crucialmente, o Sul Global viu através da fachada. O genocídio de Israel em Gaza, apoiado abertamente por Washington, destruiu qualquer legitimidade restante. O sistema ocidental agora está exposto – economicamente sobrecarregado, diplomaticamente isolado e militarmente vulnerável.


The Cradle: Como você interpreta a postura do governo Trump em relação a esse colapso?


Gurdeniz: Trump não é o arquiteto deste colapso – ele é o produto dele. Ele e a sua equipa entendem que o modelo pós-1945 não serve mais aos EUA. A base industrial está esvaziada. A dívida atingiu US$ 34 trilhões.


O dólar está sendo ignorado no comércio global. O poder americano está se contraindo. O que Trump oferece é uma retirada disfarçada de força. Ele quer acabar com os embaraços dos Estados Unidos e se concentrar na restauração da indústria nacional. Ele sabe que a OTAN é um fardo, não um trunfo. Seu desafio não é ideológico – é existencial. Ele quer manter o império americano vivo, reduzindo-o a um tamanho sustentável.


The Cradle: Qual é o destino da OTAN nessa equação?


Gurdeniz: A OTAN é agora uma aliança zumbi. Ela existe mais como um mito do que como um bloco militar funcional. A sua expansão tem sido imprudente. As suas operações – dos Bálcãs à Líbia e à Ucrânia – desestabilizaram regiões inteiras, e a sua credibilidade está em colapso.


Enquanto isso, a UE está promovendo uma reforma militar de € 800 bilhões (aproximadamente US$ 864 bilhões) sob o nome " ReArm Europe ". Mas isso exige uma austeridade maciça interna. Os governos europeus estão preparando as suas populações para a guerra, não para a paz. Eles precisam de inimigos para justificar os gastos.


Mas sem a liderança dos EUA, a OTAN não pode sobreviver como uma estrutura coerente. Os Estados Unidos de Trump não lutarão pela Estónia nem enviarão tropas para a Moldávia. A Europa terá que se defender – e não está pronta.


The Cradle: O mundo está realmente mudando para uma ordem multipolar — ou ainda é prematuro?


Gurdeniz: A mudança é real e irreversível. Os BRICS estão crescendo. A Organização de Cooperação de Xangai está se expandindo. O comércio está se afastando do dólar. Potências regionais como Irão, Índia, Brasil e Turquia estão se afirmando. Não se trata de um retorno aos blocos da Guerra Fria. É um reequilíbrio – um mundo onde nenhum centro único domina.


Multipolaridade não é utopia. É soberania. Ela permite que as nações se alinhem com base em interesses, não em coerção. O desafio agora é construir instituições que reflitam essa realidade – novos sistemas de comércio, estruturas de segurança e bancos de desenvolvimento que não sejam controlados pelo Ocidente.


The Cradle: Você defende há muito tempo a doutrina marítima da "Pátria Azul". Como isso se encaixa no futuro da Turquia na Eurásia?

Gurdeniz: A Pátria Azul não é um slogan – é o nosso imperativo geopolítico. A Turquia é cercada por águas disputadas: o Egeu, o Mediterrâneo Oriental e o Mar Negro. Se entregarmos esses espaços, ficaremos isolados e irrelevantes.


As potências ocidentais, particularmente através da Grécia e do Chipre, querem nos encurralar na Anatólia. O Mapa de Sevilha, apoiado pela UE, reduziria nosso espaço marítimo em 90%. Isso é uma sentença de morte geopolítica.


A Pátria Azul afirma os nossos direitos legais, a nossa presença naval e os nossos interesses energéticos. Combinados com o Corredor do Meio – que nos liga à Ásia Central e à China – formamos um eixo continental-marítimo. Esta é a espinha dorsal da estratégia da Turquia para o século XXI .

The Cradle: Qual é a sua avaliação da orientação económica da Turquia nesta nova ordem mundial?


Gurdeniz: Precisamos abandonar a ilusão de que o investimento estrangeiro direto e a integração à UE nos salvarão. Esse modelo fracassou. Ele trouxe dívida, privatização e dependência. A nossa economia deve ser construída com base na produção, não na especulação.


Isso significa reindustrialização, soberania alimentar e energética e comércio regional em moedas locais. Devemos proteger setores estratégicos da propriedade estrangeira. Nosso Banco Central deve ser independente não apenas do governo, mas também da influência estrangeira.


Só então podemos falar de soberania económica.

The Cradle: E quanto à diplomacia? A Turquia deve se alinhar a um bloco específico ou buscar o não alinhamento?


Gurdeniz: Devemos buscar o que chamo de "não alinhamento assertivo". Isso significa nos recusar a ser satélite de alguém. Mantemos nossas opções em aberto. Cooperamos com a Rússia, a China e o Sul Global, mas também nos envolvemos com a Europa e os EUA onde nossos interesses se alinham.

Mas há limites. Não aderiremos a regimes de sanções contra os nossos vizinhos. Não hospedaremos bases estrangeiras visando outros Estados. E não seremos arrastados para as guerras fracassadas da OTAN.


Nossa diplomacia deve servir à nossa geografia – equilibrada, firme e soberana.


The Cradle: A UE afirma ser um projeto “baseado em valores”. Como você responde a essa afirmação?


Gurdeniz: Os valores da UE são seletivos. Quando se trata dos direitos marítimos da Turquia, eles apoiam o maximalismo grego. Quando se trata da Palestina, eles não dizem nada. Quando se trata dos crimes de Israel, eles chamam isso de "legítima defesa".


Não se trata de valores – trata-se de poder. A UE quer a Turquia como zona-tampão, depósito de refugiados e fonte de mão de obra barata. Jamais nos aceitará como iguais. E não deveríamos querer entrar para esse clube.


A ossa dignidade não está à venda.


The Cradle: Qual o papel do mundo turco na sua visão do futuro da Turquia?


Gurdeniz: O mundo turco é a nossa esfera natural de cooperação. Do Azerbaijão ao Cazaquistão e ao Uzbequistão, compartilhamos língua, cultura e interesses estratégicos. A Organização dos Estados Turcos ainda está nos seus primórdios, mas tem um potencial enorme.


Precisamos investir em transporte, energia e conectividade digital em toda essa região. Precisamos criar um entendimento comum de defesa – sem interferência externa. E precisamos desenvolver narrativas compartilhadas que rompam o monopólio da historiografia ocidental.


Isto não é nacionalismo. É diplomacia civilizacional.


The Cradle: Nesse contexto, a Turquia está sendo reenfatizada como a potência com o segundo maior exército da OTAN. A rota de Ancara para a UE está sendo revitalizada, e o país quer ser mais ativo nos mecanismos de segurança europeus e estendê-los ao sul. O que a Turquia deve fazer?


Gurdeniz: Durante 67 anos, a Turquia esperou do lado de fora dos portões da UE, com a ilusão de que um dia seríamos aceites como parte da Europa. A verdade é que nunca fomos – e nunca seremos. A UE nunca apoiou nenhum dos nossos principais interesses geopolíticos.


Apoiou o Mapa de Sevilha, que nos excluiria do Mediterrâneo Oriental. Apoia a Grécia em todas as disputas marítimas. Recusa-se a reconhecer a República Turca do Chipre do Norte [RTCN]. Apoia grupos separatistas ao longo das nossas fronteiras e permanece em silêncio diante do genocídio de Israel em Gaza.


Agora, no seu recente Livro Branco, a UE afirma: “A Turquia é candidata à adesão à UE e uma parceira de longa data na área da Política Comum de Segurança e Defesa. A UE continuará a trabalhar construtivamente para desenvolver uma parceria mutuamente benéfica em todas as áreas de interesse comum.” Trata-se de um teatro diplomático – concebido para nos atrair para o seu aparato de segurança em ruínas, num momento em que temem ser abandonados pelos EUA.


A questão é: a Turquia entregará a sua autonomia estratégica, o sangue de seus soldados e a dignidade da sua nação a uma entidade que sempre a viu como um posto avançado útil, mas nunca como um igual?


Não devemos olhar para a Europa através das lentes da eurofilia, ou dos antigos complexos do período Tanzimat, ou da mentalidade de Sèvres. Devemos vê-la através das lentes da história – da nossa soberania, da visão de Ataturk e da realidade de que a Europa está em declínio.


O caminho a seguir não é perseguir ilusões em Bruxelas. É retornar aos princípios kemalistas, integrar-se ao crescente século asiático e assegurar o nosso destino geopolítico na Eurásia – nos nossos termos, não nos deles.

 

 


A entrevistadora foi a jornalista Ceyda Karan, nascida em 1970, estudou Jornalismo na Universidade de Istambul. Ao longo de sua carreira, trabalhou em renomados jornais e emissoras de TV turcas. É uma das jornalistas mais importantes com foco na política externa da Turquia. Trabalhou como editora-chefe de notícias internacionais e comentarista em jornais como Radikal Daily e Cumhuriyet (República) Daily, o mais antigo e influente da Turquia. Também trabalhou para emissoras de TV como Kanal D, Haberturk TV, Halk TV e Tele1. Escreve colunas semanais sobre assuntos globais há 20 anos. Atualmente, é comentarista do jornal independente turco Birgün Daily e trabalha como apresentadora e comentarista na RSFM (Rádio Turca Sputnik); tem um programa de notícias chamado "Eksen" (Eixo).




The Cradle, 11 de abril de 2025


https://thecradle.co/articles/blue-homeland-architect-warns-nato-has-failed-and-the-eu-wants-turkiye-on-its-knees

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